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Do diagnostico de incapacidade ao sonho com as estrelas

Percebi as alterações de desenvolvimento do meu filho quando ele tinha oito meses. Se tratava de manifestações sutis. Um fascínio pelas luzes do teto, para as quais ele vocalizava em sons guturais de satisfação quando acendíamos (valia o mesmo para objetos luminosos); o ganhar presente e desprezar o brinquedo e optar pela embalagem. Mas principalmente, a sensação intima de sentir-me como extensão dele para uso e não para troca-afetiva. Isso se expressava na forma como ele pegava meu braço e o levava até o objeto desejado, ao invés de apontá-lo. Percepções sutis, que compõe as muitas narrativas de mães que como eu, perceberam que existia alguma coisa “diferente” com seu filho. 

Lembro até hoje quando minha intuição se transformou em dúvida, quando o coloquei deitado para ensinar-lhe a dizer mamãe e percebi o incômodo em olhar-me e o choro posterior, que no íntimo ressoou “é autismo”. Nesse momento, o abracei e prometi ajudá-lo a construir seu lugar no mundo, já que sabia, que a luta histórica das ditas “minorias sociais” é pelo direito à diferença e a construção de espaços plurais.

Passado este instante, vieram às pesquisas, as observações e, até chegar a neuropediatra foram três meses de espera. Obtive o diagnóstico, expresso em uma frase, que me é inesquecível: “É autismo! Não preciso lhe encaminhar para terapeutas e psicólogos porque você já fez as observações necessárias. Agora precisamos verificar se é degenerativo, se ele vai andar ou se vai falar”. A frase expressa sob a forma de uma sentença, reflete a diferença diagnóstica do autismo em relação às outras deficiências e, marcar o lugar do discurso médico, que apresenta o autismo sob o signo do déficit e da impossibilidade, como uma “sentença de morte”, não à toa o sentimento de luto dos pais, mediante o diagnóstico.

Acredito que se tivéssemos uma sociedade mais inclusiva, teríamos condições de pensar o autismo a partir do que ele é de fato, como uma condição da neurodiversidade humana.

Penso que o Transtorno do Espectro Autista (TEA), têm, como as flores, uma botânica singular e diversa, que se compõe de “aditivos” que até aquele instante não fazia a mínima ideia que teria que considerar, ao que cito: epilepsia, deficiência intelectual, transtornos mentais, transtornos do processamento sensorial, alergias, problemas gástricos. Alterações que “comumente acompanham o autismo”, por isso, jocosamente digo que cada autista vem com “um combo específico de comorbidades”.

Tive oportunidade ao longo da minha trajetória como mãe de pessoa autista, conhecer a combinação do TEA com outras deficiências, como: autismo e cegueira; autismo e síndrome de Down. No caso do autismo com cegueira, a criança vive sem acompanhamento terapêutico, pois os profissionais apresentam-se como impossibilitados de atendê-la, haja vista, a ausência de treinamento compatível com o quadro das duas deficiências combinadas – Como se competência não pudesse ser desenvolvida. Essa postura misantropa faz parte de uma, das muitas camadas da cultura terapêutica que permeia o universo do autismo, principalmente na esfera do ensino de habilidades para a vida diária[1]  , por isso, sempre lanço aos profissionais a seguinte reflexão: “Toda vez que enxergar um limite no meu filho, questione-se: Esse limite está nele ou em mim?”.

Retomando, o hiato temporal de minhas memórias, recepcionei o diagnóstico de forma pragmática, diria até, de forma barbara, como o cimério[2] que habita em mim, não permitindo-me a imputação do vitimismo. Apenas, lembrei da fala de uma mãe em um documentário “quando você tem bocas para alimentar, não existe espaço para sofrer” e, assim conferi o lugar de fragilidade ao meu filho e busquei desenvolver competências, para que no dia que deixá-lo, após a minha morte; ele tenha habilidades básica para a vida diária e assim, não seja maltratado ou dependa da caridade alheia. Em razão dessa posição de vida, quando alguém me pede para testemunhar minha trajetória e, principalmente, me pede que ofereça uma “palavra amiga” ou “de consolo” à uma mãe que tenha recebido o diagnóstico, aviso que não sou a pessoa mais indicada, pois apenas direi: “Enterre seu filho idealizado e acolha o filho real, que precisa de cuidados, amor e não lamentos”.

E, desde a compreensão de quem precisava está no lugar de fragilidade era meu filho, que vivo a luta diária por seus direitos, cujo marco foi a judicialização do seu tratamento em 2014. Observo que nesta época nem havia jurisprudências de tratamento e que foi necessário muito desgaste e acionamento de diversos órgão de proteção para se ter o pleito atingido e desde essa data até o dia de hoje, temos uma pessoa que saiu de um diagnóstico de autismo severo (termo usado na época) para um autismo de suporte 1, com a possibilidade de uma vida autônoma, graças a um tratamento que ocorreu no tempo certo e com a intervenção adequada. E, nesse sentido, não é apenas o recurso financeiro decisivo, mas o conhecimento da família para a condução das terapias e acima de tudo a aposta no potencial da pessoa com deficiência.


[1] Habilidades para a vida diária, refere-se ao treino de atividades de alimentação, higiene, vestimenta, para que a pessoa autista ou com deficiência tenha autonomia básica.

 

[2] Aos doze anos, após tomar contato com Conan, personagem do escritor Robert E. Howard, desenvolvi uma espécie de alter-ego influenciado pelo escritor, principalmente a partir da questão religiosa que marcava a vida do guerreiro cimério. Tratava-se da adoração ao deus Crom. Um deus severo e sombrio que mora em uma montanha gelada coberta de névoas. De lá observa os mortais com reprovação. Crom confere aos mortais coragem, vontade de viver e capacidade de superar as adversidades, por isso reprova os guerreiros que morrem em combate. Quando um guerreiro se apresenta aos pés de Crom, a única pergunta que realizada é se o homem foi um bom guerreiro, pois Crom despreza os covardes. 

Hoje, Thiago Henrique é um adolescente que sonha em ser astrônomo.​

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